Louis Van Gaal, o genial treinador que quer que a FIFA
desenvolva o futebol
De volta ao
comando da Seleção Holandesa e multicampeão por onde passou, ele assumiu
postura agressiva contra a Copa no Catar: "É sobre dinheiro"
Por Leonardo Miranda
Louis van Gaal não está para
brincadeiras. Rico, vencedor e com 70
anos, ele topou quebrar a aposentadoria para uma missão especial: tirar a
Holanda da maior crise vivida na história e voltar a disputar uma Copa.
Missão
concluída ainda na 10ª rodada, com vitória contra a Noruega. Mas ele só topou
sair da aposentadoria para contribuir com o desenvolvimento do futebol holandês
como um todo, o que implica em voltar ao Mundial, mas também a repensar
categorias de base e o jogo como um todo. Por isso, ele não se escondeu e
criticou duramente a realização da Copa do Mundo no Catar nesta semana, em
coletiva antes do confronto contra a Dinamarca.
Eu acho ridículo que a Copa
do Mundo seja lá. Estamos jogando em um país onde a Fifa diz que quer
desenvolver o futebol. Isso é besteira, mas não importa. É sobre dinheiro.
Sobre interesses comerciais. Isso importa para a Fifa. Por que você acha que eu
não estou em nenhum comitê da Fifa ou da Uefa com a minha experiência? Porque eu
sempre fui contra esses tipos de organizações.
Louis van Gaal, atual treinador da Holanda —
Foto: Reprodução
Quem perde é a FIFA e a UEFA.
Treinador holandês que mais venceu na história do país, Louis
van Gaal se caracterizou por ser um exímio construtor de equipes.
Um desenvolvedor de uma cultura de jogo e da prática esportiva. A personalidade
explosiva e rígida faz muitos torcerem o nariz. Alguns brasileiros o odeiam.
Ele é
talvez o único a entender e tirar o melhor de todas as escolas que dominaram o
futebol holandês nos últimos anos e influenciaram treinadores que vão de Klopp,
Guardiola, Mourinho, Tuchel - o que coloca basicamente qualquer técnico, de
Jorge Jesus a Abel Ferreira, de Felipão a Luxemburgo, no balaio. É impossível
não aprender com van Gaal.
Ajax, o principal trabalho de construção de uma filosofia de
jogo
O período de 1991 a 1996 marca o último momento de domínio total
do futebol holandês no âmbito de clubes. Foi quando Louis treinou o Ajax, onde
chegou como assistente em 1987. Ele construiu um time quase que do zero, usando
categorias de base, num 3-4-3 que tinha como grande princípio o controle da
partida a partir da bola. Por consequência:
- Quando o time perdia a bola, todo
mundo deveria pressionar e sufocar para recuperar a posse o mais rápido
possível
- Quando o time tinha a bola, todos -
do goleiro ao centroavante - deveriam realizar ações para abrir espaço na
defesa adversária
- E se não tinha espaço? Toca para trás. Mas não por marasmo. Toca para manter a bola como uma forma de continuar controlando o jogo.
Van Gaal fez trabalho fenomenal no Ajax —
Foto: Reprodução
São os mesmos princípios de Johan
Cruyff, rival no Barcelona na época. Apesar de inimigos declarados, eles
colocavam a mesma visão de jogo (e da vida) em seus times. Se impor uma
filosofia já é difícil, Gaal conseguiu ganhando títulos, vencendo o poderoso
Milan na Liga dos Campeões. Desenvolveu jogadores como Seedorf, Patrick
Kluivert, Frank de Boer, Edgar Davids e Edvin van der Sar. Reformulou as
categorias de base do clube, criou regras de treinamento, nutrição, fisiologia.
Em suma: deu retorno esportivo, financeiro, histórico.
A influência de Leo Beenhakker e a importância de entender a
oposição
Quando van Gaal chegou ao Ajax, o
treinador da equipe principal era Leo Beenhakker. É um nome pouco conhecido,
mas de uma importância fundamental na mente de Gaal. Leo pegou o Ajax após a
saída de Cruyff e foi ao Real Zaragoza em crise. Ele acreditava que nem todo
mundo conseguiria praticar o futebol bonito e vistoso de Cruyff. Para os menos
afortunados e pobres, o melhor era se defender bem, atacar pouco e colocar a
vitória em primeiro lugar. Não se importava em ter a bola. Queria controlar o
espaço.
Beenhakker
chocou a ideia holandesa da prática do futebol bonito, onde o "bom
futebol" idealizado por Cruyff fazia muitos treinadores insistirem que
ganhar era menos importante que ganhar bem. O Ajax que venceu o Holandês em
1991 teve o pior ataque da Eredivise desde 1976-77, mas ostentou a melhor
defesa: 23 gols sofridos. Quando venceu o Campeonato Holandês novamente, lá em
1999 com o Feyenoord, Beenhakker foi claro: seu estilo de futebol era prático.
Como genial que é, van Gaal sabe
que uma das piores coisas para um ser humano é o radicalismo. Ele não seguia
fielmente a filosofia de Cruyff. Nem a de Beenhakker. Ele
sabia que filosofias e jeitos de jogar são apenas dois lados da mesma moeda.
Duas formas de ver e sentir o mesmo jogo. Há momentos que a oposição quer a
mesma coisa que você, apenas por um meio diferente.
Um grande
exemplo disso é seu trabalho no AZ Alkmaar: com um orçamento muito mais baixo
que rivais, van Gaal topou o desafio e montou um 4-4-2 prático e sólido, que
controlava espaços na defesa e atacava com velocidade. No Bayern, ele chegou
para mudar o estilo de jogo que vinha com Felix Magath. O clube precisava de
uma reconstrução que Klinsmann falhou em fazer.
Seu
estilo tinha um pouco de tudo: controle da bola e do espaço, mudanças de acordo
com o adversário. Ele mudou a posição de Schweinsteiger, colocando-o mais
atrás, com mais campo. Promoveu jovens como Contento, David Alaba, Holger
Badstuber and Thomas Muller. Melhorou o jogo de Robben e levou um time
desacreditado a uma final de Liga dos Campeões.
Louis van Gaal e José Mourinho duelaram na
final da Liga dos Campeões de 2009-10 — Foto: Reprodução
No Barcelona, a preocupação com o futuro e a formação de uma
metodologia
Mesmo que seja inflexível em
cobranças, o que assusta Rivaldo até hoje, van Gaal tem outra qualidade que
supera o futebol: ele se adapta ao meio. E tenta contribuir com ele. Quando
chegou ao Barcelona, Gaal viu que o clube amava Cruyff, mas não tinha um
documento, um livro, com treinamentos e bases do que ele fez. Era muito papo,
romantismo, mas pouco prático.
A ideia
dele foi simples. Juntou profissionais da base e principalmente Paco Seirulo,
estudioso científico do futebol. Juntos, eles pensaram em treinos, explicações
e exemplos para que outros treinadores pudessem fazer o mesmo que Cruyff. Isso
se chama metodologia. Um dos pontos de partida da metodologia foi o diagrama de
Voronói: a ideia não era ter a bola? E se os jogadores ao redor da bola se
afastam constantemente no espaço? O time jamais vai perder a posse. Daí nasceu
o rondo, ou bobinho, treinamento que é básico em qualquer time no mundo hoje.
Louis van Gaal orienta um jovem Xavi, com
apenas 18 anos. — Foto: Leonardo Miranda
Apesar de uma segunda passagem
ruim, van Gaal mudou o futebol no mundo nos anos do Barcelona. Ele foi o
responsável por promover um tal de Xavi Hernandéz ao time principal. Quem é
técnico do Barcelona hoje mesmo? Seu auxiliar era um certo português ávido por
conhecimento, que acreditava em coisas diferentes, mas assim como ele, queria
entender muito bem a oposição. Um tal de José Mourinho.
Na Holanda, o respeito com as raízes e o passado
Depois do Bayern, van Gaal foi
apontado para uma segunda passagem pela Holanda. Ele tinha formado o que
acredita, o mesmo 4-3-3 com as bases do Jogo de Posição. Mas a perda de
Strootman logo antes do Mundial no Brasil o obrigou a ser flexível como nunca
antes. Aí vem outra lição humana: os problemas chegam, estão aí, e o que
podemos fazer é solucioná-los.
Com poucos treinos e muita mobilização,
van Gaal resgatou o que chamou nas coletivas de "Old Dutch System",
uma filosofia de jogo anterior aos tempos de Cruyff. Ela pregava marcação
individual bem fechada e toda a criatividade para o meia central e dois
atacantes de área. Robben jogou mais avançado, Van Persie fez gols e a Holanda
protagonizou o Baile de Salvador na Espanha com o brilhantismo do técnico.
Louis van Gaal jogo Holanda x Brasil — Foto:
EFE
É impossível viver apenas de
sucessos. Van Gaal foi mal no Manchester United, mesmo sendo um nome tido como
certo para resgatar a cultura de um clube após a traumática saída de Ferguson.
Comprou briga com Rooney, apostou num sistema muito estático e não entendeu o
perfil do elenco. Por lá passaram Giggs, Mourinho, Solskjaer e Rangnick. Só van
Gaal e Mourinho venceram títulos.
Nos
outros clubes, Gaal sempre teve créditos na formação de uma cultura. No Ajax,
ele foi diretor esportivo e é um dos responsáveis pela formação de uma
categoria de base que produz jogadores de destaque. Phillip Lahm já disse que
ele é o "pai" do Bayern dominante que o conhecemos hoje. No
Barcelona, é só olhar pro técnico atual. Quem o formou?
Agora, van Gaal quer que a FIFA
faça o mesmo que sua vasta e rica experiência provou que é o mais humano a se
fazer: respeitar o passado, viver o presente e se preparar para o futuro.
O futebol
ganha com um genial treinador de volta ao futebol.
Abraços, até a próxima.