quarta-feira, 13 de abril de 2022

Louis Van Gaal, o genial treinador que quer que a FIFA desenvolva o futebol

De volta ao comando da Seleção Holandesa e multicampeão por onde passou, ele assumiu postura agressiva contra a Copa no Catar: "É sobre dinheiro"

Por Leonardo Miranda

Louis van Gaal não está para brincadeiras. Rico, vencedor e com 70 anos, ele topou quebrar a aposentadoria para uma missão especial: tirar a Holanda da maior crise vivida na história e voltar a disputar uma Copa.

Missão concluída ainda na 10ª rodada, com vitória contra a Noruega. Mas ele só topou sair da aposentadoria para contribuir com o desenvolvimento do futebol holandês como um todo, o que implica em voltar ao Mundial, mas também a repensar categorias de base e o jogo como um todo. Por isso, ele não se escondeu e criticou duramente a realização da Copa do Mundo no Catar nesta semana, em coletiva antes do confronto contra a Dinamarca.

Eu acho ridículo que a Copa do Mundo seja lá. Estamos jogando em um país onde a Fifa diz que quer desenvolver o futebol. Isso é besteira, mas não importa. É sobre dinheiro. Sobre interesses comerciais. Isso importa para a Fifa. Por que você acha que eu não estou em nenhum comitê da Fifa ou da Uefa com a minha experiência? Porque eu sempre fui contra esses tipos de organizações.

 

                        Louis van Gaal, atual treinador da Holanda — Foto: Reprodução

Quem perde é a FIFA e a UEFA. Treinador holandês que mais venceu na história do país, Louis van Gaal se caracterizou por ser um exímio construtor de equipes. Um desenvolvedor de uma cultura de jogo e da prática esportiva. A personalidade explosiva e rígida faz muitos torcerem o nariz. Alguns brasileiros o odeiam.

Ele é talvez o único a entender e tirar o melhor de todas as escolas que dominaram o futebol holandês nos últimos anos e influenciaram treinadores que vão de Klopp, Guardiola, Mourinho, Tuchel - o que coloca basicamente qualquer técnico, de Jorge Jesus a Abel Ferreira, de Felipão a Luxemburgo, no balaio. É impossível não aprender com van Gaal.


Ajax, o principal trabalho de construção de uma filosofia de jogo

O período de 1991 a 1996 marca o último momento de domínio total do futebol holandês no âmbito de clubes. Foi quando Louis treinou o Ajax, onde chegou como assistente em 1987. Ele construiu um time quase que do zero, usando categorias de base, num 3-4-3 que tinha como grande princípio o controle da partida a partir da bola. Por consequência:

  • Quando o time perdia a bola, todo mundo deveria pressionar e sufocar para recuperar a posse o mais rápido possível
  • Quando o time tinha a bola, todos - do goleiro ao centroavante - deveriam realizar ações para abrir espaço na defesa adversária
  • E se não tinha espaço? Toca para trás. Mas não por marasmo. Toca para manter a bola como uma forma de continuar controlando o jogo.

                                        Van Gaal fez trabalho fenomenal no Ajax — Foto: Reprodução

São os mesmos princípios de Johan Cruyff, rival no Barcelona na época. Apesar de inimigos declarados, eles colocavam a mesma visão de jogo (e da vida) em seus times. Se impor uma filosofia já é difícil, Gaal conseguiu ganhando títulos, vencendo o poderoso Milan na Liga dos Campeões. Desenvolveu jogadores como Seedorf, Patrick Kluivert, Frank de Boer, Edgar Davids e Edvin van der Sar. Reformulou as categorias de base do clube, criou regras de treinamento, nutrição, fisiologia. Em suma: deu retorno esportivo, financeiro, histórico.


A influência de Leo Beenhakker e a importância de entender a oposição

Quando van Gaal chegou ao Ajax, o treinador da equipe principal era Leo Beenhakker. É um nome pouco conhecido, mas de uma importância fundamental na mente de Gaal. Leo pegou o Ajax após a saída de Cruyff e foi ao Real Zaragoza em crise. Ele acreditava que nem todo mundo conseguiria praticar o futebol bonito e vistoso de Cruyff. Para os menos afortunados e pobres, o melhor era se defender bem, atacar pouco e colocar a vitória em primeiro lugar. Não se importava em ter a bola. Queria controlar o espaço.

Beenhakker chocou a ideia holandesa da prática do futebol bonito, onde o "bom futebol" idealizado por Cruyff fazia muitos treinadores insistirem que ganhar era menos importante que ganhar bem. O Ajax que venceu o Holandês em 1991 teve o pior ataque da Eredivise desde 1976-77, mas ostentou a melhor defesa: 23 gols sofridos. Quando venceu o Campeonato Holandês novamente, lá em 1999 com o Feyenoord, Beenhakker foi claro: seu estilo de futebol era prático.

Como genial que é, van Gaal sabe que uma das piores coisas para um ser humano é o radicalismo. Ele não seguia fielmente a filosofia de Cruyff. Nem a de Beenhakker. Ele sabia que filosofias e jeitos de jogar são apenas dois lados da mesma moeda. Duas formas de ver e sentir o mesmo jogo. Há momentos que a oposição quer a mesma coisa que você, apenas por um meio diferente.

Um grande exemplo disso é seu trabalho no AZ Alkmaar: com um orçamento muito mais baixo que rivais, van Gaal topou o desafio e montou um 4-4-2 prático e sólido, que controlava espaços na defesa e atacava com velocidade. No Bayern, ele chegou para mudar o estilo de jogo que vinha com Felix Magath. O clube precisava de uma reconstrução que Klinsmann falhou em fazer.

Seu estilo tinha um pouco de tudo: controle da bola e do espaço, mudanças de acordo com o adversário. Ele mudou a posição de Schweinsteiger, colocando-o mais atrás, com mais campo. Promoveu jovens como Contento, David Alaba, Holger Badstuber and Thomas Muller. Melhorou o jogo de Robben e levou um time desacreditado a uma final de Liga dos Campeões.


    Louis van Gaal e José Mourinho duelaram na final da Liga dos Campeões de 2009-10 — Foto: Reprodução

No Barcelona, a preocupação com o futuro e a formação de uma metodologia

Mesmo que seja inflexível em cobranças, o que assusta Rivaldo até hoje, van Gaal tem outra qualidade que supera o futebol: ele se adapta ao meio. E tenta contribuir com ele. Quando chegou ao Barcelona, Gaal viu que o clube amava Cruyff, mas não tinha um documento, um livro, com treinamentos e bases do que ele fez. Era muito papo, romantismo, mas pouco prático.

A ideia dele foi simples. Juntou profissionais da base e principalmente Paco Seirulo, estudioso científico do futebol. Juntos, eles pensaram em treinos, explicações e exemplos para que outros treinadores pudessem fazer o mesmo que Cruyff. Isso se chama metodologia. Um dos pontos de partida da metodologia foi o diagrama de Voronói: a ideia não era ter a bola? E se os jogadores ao redor da bola se afastam constantemente no espaço? O time jamais vai perder a posse. Daí nasceu o rondo, ou bobinho, treinamento que é básico em qualquer time no mundo hoje.


                Louis van Gaal orienta um jovem Xavi, com apenas 18 anos. — Foto: Leonardo Miranda

Apesar de uma segunda passagem ruim, van Gaal mudou o futebol no mundo nos anos do Barcelona. Ele foi o responsável por promover um tal de Xavi Hernandéz ao time principal. Quem é técnico do Barcelona hoje mesmo? Seu auxiliar era um certo português ávido por conhecimento, que acreditava em coisas diferentes, mas assim como ele, queria entender muito bem a oposição. Um tal de José Mourinho.

Na Holanda, o respeito com as raízes e o passado

Depois do Bayern, van Gaal foi apontado para uma segunda passagem pela Holanda. Ele tinha formado o que acredita, o mesmo 4-3-3 com as bases do Jogo de Posição. Mas a perda de Strootman logo antes do Mundial no Brasil o obrigou a ser flexível como nunca antes. Aí vem outra lição humana: os problemas chegam, estão aí, e o que podemos fazer é solucioná-los.

Com poucos treinos e muita mobilização, van Gaal resgatou o que chamou nas coletivas de "Old Dutch System", uma filosofia de jogo anterior aos tempos de Cruyff. Ela pregava marcação individual bem fechada e toda a criatividade para o meia central e dois atacantes de área. Robben jogou mais avançado, Van Persie fez gols e a Holanda protagonizou o Baile de Salvador na Espanha com o brilhantismo do técnico.

                                            Louis van Gaal jogo Holanda x Brasil — Foto: EFE

É impossível viver apenas de sucessos. Van Gaal foi mal no Manchester United, mesmo sendo um nome tido como certo para resgatar a cultura de um clube após a traumática saída de Ferguson. Comprou briga com Rooney, apostou num sistema muito estático e não entendeu o perfil do elenco. Por lá passaram Giggs, Mourinho, Solskjaer e Rangnick. Só van Gaal e Mourinho venceram títulos.

Nos outros clubes, Gaal sempre teve créditos na formação de uma cultura. No Ajax, ele foi diretor esportivo e é um dos responsáveis pela formação de uma categoria de base que produz jogadores de destaque. Phillip Lahm já disse que ele é o "pai" do Bayern dominante que o conhecemos hoje. No Barcelona, é só olhar pro técnico atual. Quem o formou?

Agora, van Gaal quer que a FIFA faça o mesmo que sua vasta e rica experiência provou que é o mais humano a se fazer: respeitar o passado, viver o presente e se preparar para o futuro.

O futebol ganha com um genial treinador de volta ao futebol.


Abraços, até a próxima.